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Faça o trabalho que você acredita, não aquele que você ama

Já virou clichê: um texto inspirador narrando como nascemos para fazer aquilo que a gente ama. Devemos largar o emprego, respirar fundo, tomar coragem e começar uma aventura trabalhando com o que nos traz felicidade profunda.

E isso tudo pode ser, sim, verdade. Simplesmente não vale a pena usar a maior parte do nosso tempo em uma coisa que não nos dá prazer.

O que me intriga, porém, não são as pessoas que não gostam do seu trabalho, sim as pessoas que não acreditam nele. Seja por não acreditarem no produto (ou serviço) que oferecem ao mundo, seja por não acreditar na forma como aquilo é oferecido.

Temos um exército de pessoas que aceitam a ideia de que o mundo do trabalho é isso aí mesmo, que as relações entre pessoas e empresas funciona assim e que a gente deve trabalhar para quem nos oferece as melhores condições, sem traçar qualquer conexão entre o nosso trabalho e as consequências que a empresa traz para o mundo, boas ou ruins.

Mas existe muita ideologia por trás do discurso de que o trabalho não é ideologia. Quando a gente aprende que trabalho é trabalho, lazer é lazer, política é política e essas são todas dimensões separadas da vida, estamos nos adequando a uma narrativa meticulosamente construída.

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O trabalho que você faz molda o mundo que você vive. Por isso, escolha um trabalho que você acredita, não necessariamente um que você ama. Se der para juntar as duas coisas, perfeito!


Mário Sérgio Cortella, grande filósofo brasileiro, tem uma linda palestra na qual ele narra a sua experiência como secretário de educação em São Paulo.

“No andar onde eu trabalhava tinha uma cozinha onde ficava a Dona Maria, que fazia café para servir no gabinete do secretário.”, ele conta.

“Sabe o que Dona Maria achava que fazia ali?”

A resposta não poderia ser mais simples: “Café.”

Como secretário, Cortella fazia muitas visitas oficiais em escolas que estavam sendo inauguradas. Eventos que tinham banda, comida, comemoração, faixa sendo cortada, crianças cantando em coro… Ele então deicidiu mudar a lógica: passou a levar os servidores do dia-a-dia para essas visitas, não os seus assessores políticos. Dona Maria foi a primeira.

“De repente ela entendeu que o que ela fazia na secretaria de educação não era café. Era educação.”

Esse pensamento simples transformou o trabalho na secretaria. Quando separamos aquilo que nós fazemos como indivíduos daquilo que estamos ajudando a construir, o resultado é muito perigoso. Desumanizamos o trabalho.


Enquanto a gente se adequar e fechar o nariz para as coisas erradas que as empresas fazem – seja na sua cadeia de produção, seja na relação com o meio ambiente, seja na forma como trata os seus funcionários – estaremos compactuando com isso. Talvez até pior: estaremos ajudando isso tudo a acontecer.

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Eu não estou sugerindo aqui que é fácil encarar o patrão, estufar o peito e se impor. Não estou dizendo que as relações de trabalho dão sempre esse tipo de abertura. Por outro lado, acredito sim que a gente subestima o nosso potencial transformador quando estamos dentro de uma organização. Pessoas simples fazendo coisas pequenas em lugares pouco importantes, geram mudanças extraordinárias.

Também não espero que essa postura seja escrita em pedra. Cada momento de vida pede uma resposta. O que é inegociável para você hoje? Pode ser que amanhã isso mude.

Um trabalho que você acredita não necessariamente precisa ter o objetivo de salvar o mundo. Se você quer vender chocolate, ser DJ ou dirigir um táxi, ótimo! Como esse trabalho impacta a sua vida e a de outros – ao seu lado ou bem longe de você – é o ponto que merece pelo menos uma reflexão crítica.


Isso tudo não vem sem contradições. E muitas vezes a linha é muito tênue. Onde está o limite? Em geral é uma pergunta bastante pessoal.

No que você acredita?

Particularmente, eu não acredito na indústria das armas. Para mim, é um produto que não faz sentido como produção e comercialização em massa e eu nunca usaria meu esforço, minha energia e criatividade para vendê-lo. Não quero trabalhar com essas empresas. Mas essa é a minha cabeça. Tenho um grande amigo que faz parte de clube de tiro, adora armas e pratica tiro esportivo sempre que pode. Talvez ele adorasse fazer um projeto com esse pessoal. E eu não vou julgá-lo por isso.

No final das contas, as escolhas estão dentro de cada um. O mais importante é ter uma visão crítica sobre aquilo que estamos construindo. Seu trabalho é também o seu legado. Se é para aceitar ou se adequar a alguma coisa, que essa seja pelo menos uma decisão consciente. O piloto automático é a armadilha. O mundo certamente seria um lugar melhor se o que a gente faz fosse mais alinhado com o que a gente acredita, mesmo que eu e você acreditemos em coisas diferentes.

“A vida é muito curta para ser pequena.”, dizia Benjamin Disraeli.

PS: algumas discussões interessantes surgiram depois da publicação do post e, com elas, aquela ansiedade de não ter abordado certos aspectos, não ter conseguido aprofundar em outros… Esse texto não tem o intuito de cobrir todas as questões, mas de servir de provocação e gerar uma discussão sobre o tema. E eu vou ter que conviver com o fato de não ter falado sobre isso ou aquilo.